O velho “porta a porta”, hoje chamado de venda direta, emprega 2,5 milhões de brasileiros – e, para milhares deles, é um atalho para a ascensão social.
Por BRUNO MEIER
Reportagem da Revista VEJA, edição 2174 – ano 43 – nº 29 – 21 de julho 2010, seção ESPECIAL – páginas 114 a 121.
Há nove anos, o baiano Guilherme Pólvora teve de deixar de vender peixe nas feiras de São Paulo, coma fazia havia mais de duas décadas: a concorrência com os supermercados fora se tomando tão dura que ele não mais ganhava com seu trabalho - só perdia. O ex-feirante, porém, virou a seu favor essa situação adversa. Aproveitando a lábia cultivada em anos de pregão nas ruas, partiu para o segmento de vendas diretas, primeiro oferecendo carnês e, depois, cosméticos. Foi nesse ultimo filão que ele se encontrou. Hoje, Pólvora emprega trinta profissionais, que o, auxiliam na revenda de produtos de quatro empresas - e recolhe para si cerca de 15000 reais por mês. O paulistano Daniel Castro não foi premido pela necessidade, como Pólvora. Mas chegou a um resultado similar. Em 2009, trocou a segurança do expediente em uma empresa de energia elétrica, onde trabalhara por dez anos, por uma aposta aparentemente incerta: foi fechar pacotes de viagem em uma agência de turismo que opera com vendas diretas. Descobriu um talento insuspeito para abordar potenciais clientes e persuadi-los. Fatura em média 13000 reais mensais, mais de quatro vezes o antigo salário. Em março, um mês de grande movimento, bateu um recorde na empresa, atingindo 35.000 reais.
Atividade quase tão antiga quanto a própria humanidade, a venda direta – ou de porta em porta, como era chamada – resiste até às mais profundas transformações sociais e econômicas. As cidades hoje proporcionam infinitas oportunidades de consumo, e a Internet se converteu em um poderoso motor de negócios. Mas, conforme indicam os números essas facilidades em nada diminuem o apelo ao vendedor que vai até o freguês, demonstra-lhe as supostas virtudes do seu produto e propicia-lhe, ainda, uns tantos minutos de atenção exclusiva e bate-papo. “O brasileiro é muito sociável, e aprecia esse contato pessoal no ato da compra”, diz Paulo Quaglia, da Avon e também presidente da Associação Brasileira de Empresas de Vendas Diretas (ABEVD).
Nem todas as histórias de indivíduos que se aventuram nesse segmento resultam tão róseas quanto as de PóIvora e Castro. Mas muitas, sim, evoluem para a satisfação. Hoje, segundo a ABEVD, há no país 2,5 milhões de revendedores, e o setor passa por um crescimento explosivo. No ano passado, esse exército vendeu 1,7 bilhão de itens, de cosméticos a suplementos alimentares, livros e utensílios domésticos, e movimentou 21,8 bilhões de reais – 18,4% a mais que em 2008. O primeiro trimestre deste ano confirmou a curva ascendente: venderam-se 5,2 bilhões de reais, um aumento de 19% sobre o mesmo período de 2009. Segundo os executivos do setor, muito desse impulso decorre da elevação de milhões de brasileiros à classe C, à qual chegam ávidos por consumir. Para esse novo freguês, o produto que vem até a sala de sua casa é virtualmente irresistível. É desse meio, também , que saem muitos dos vendedores: para a grande maioria, o porta em porta é apenas um reforço no orçamento doméstico, e raramente rende mais de 500 reais por mês. Mas, dado o ímpeto do setor, já se observa também um contingente expressivo de pessoas que se dedicam exclusivamente a essa atividade e, com êxito nela, sobem alguns degraus na pirâmide social.
Para melhor visualizar o descrito na figura acima transcrevo nos dois quadros abaixo
Tradicionalmente, a venda direta era quase um passatempo para mulheres que, em escala modesta, ofereciam seus produtos a parentes, vizinhos e amigos. Na ultima década, esse perfil se alterou. Em algumas empresas, os homens já somam 40% dos revendedores. Também se tem verificado um maior ingresso de jovens, em particular universitários que desejam ganhar dinheiro sem comprometer as horas necessárias aos estudos. “e muitos jovens nos procuram para revender nossos produtos em seu círculo social”, diz Marcelo Salcberg, diretor-geral no Brasil dos suplementos alimentares Herbalife. Na MonaVie, especializada na venda direta de sucos exóticos, um terço dos distribuidores tem entre 18 e 24 anos. Quase todas as empresas premiam os associados que conseguem atrair para suas fileiras novos vendedores – na forma de produtos ou de uma percentagem sobre as vendas dos novos membros. E, entre essas, todas insistem para que se busquem colaboradores mais jovens e instruídos. “constatou-se que, para atingir um público maior, era preciso diversificar o perfil dos vendedores”, diz Charles Szulcsewski, coordenador de pós-graduação em gestão de vendas da Escola Superior de propaganda e Marketing. Confirma Paulo Quaglia: “Hoje há nichos de vendedores mais bem preparados, que buscam sua independência financeira”.
Para alguns profissionais, a venda direta pode ser uma tábua de salvação: são aqueles que perdem o emprego depois dos 45 anos e encontram dificuldade para se reintegrar no mercado de trabalho. Com experiência e boas redes de relações já constituídas, essas pessoas muitas vezes se tornam vendedores de êxito.
É, sim, possível viver (e muito bem) de vendas diretas, como prova a trajetória da família Cristóvão, de Ribeirão Preto – que chegou a ter duas locadoras de vídeo, mas abandonou o negócio ao constatar que ganhava mais revendendo os produtos da Herbalife. Um sucesso dessa monta, porém, demanda preparo, dedicação – e, sim, certa vocação inata para as vendas.
As exigências formais para o candidato a revendedor são tão generosas quanto possível: basta ter 18 anos e vontade de trabalhar. Soma-se às facilidades o fato de que quase todas as empresas oferecem treinamento e são marcas bem estabelecidas, que investem pesado em publicidade – ou seja, arcam com a parte do leão na tarefa de persuadir o freguês da qualidade de seus produtos. Também o investimento inicial requerido do candidato é baixo: as empresas em geral pedem que o vendedor compre um kit mínimo de produtos, relativamente fácil de revender. A partir daí, não é mais necessário sacar do próprio bolso. A média de lucratividade na venda é de 30%. Com tais atrativos, não é de admirar que muitos se lancem na aventura de forma meio errática, dedicando-se nos primeiros meses e depois, quando o entusiasmo arrefece, voltando a atividade só quando a necessidade aperta. Isso porque, se é fácil vender um pouco de vez em quando, a alternativa – a profissionalização – demanda atributos bem específicos, a começar pela facilidade para construir boas relações (veja figura acima). Os empresários da ABEVD não gostam da expressão “porta a porta”, e com razão: não é boa estratégia bater à porta de desconhecidos para empurrar catálogos que eles vão ver de má vontade. O revendedor eficaz tem de criar e – o mais difícil – manter uma rede fiel de clientes. “O profissional tem total liberdade para revender os produtos da maneira que se adéque ao perfil dele. Quanto mais criativo ele for, quanto mais idéias tiver para aumentar sua rede, mais sucesso vai fazer”, diz Quaglia.
O revendedor faz seu próprio horário e carrega sua própria loja, na forma de catálogos e mostruários. Mas deve estar ciente que representa uma empresa – e, para vender mais, deve fazê-lo com empenho e dignidade. A comunicação é a proverbial alma do negócio. Erros de português, por exemplo, arrasam a credibilidade. A aparência também é essencial: não dá para vender produtos de beleza com o rosto coberto de acne, ou dietéticos quando se está vários números acima do que o figurino recomenda. De importância capital, ainda, é a convicção: o freguês em geral não é bobo, e fareja de longe os sinais de que o vendedor está tentando empurrar-lhe um produto que ele mesmo não usaria.
O momento de risco real, afirmam os especialistas, é aquele em que o novato eufórico com bons resultados iniciais decide trocar um emprego estável pela revenda em tempo integral. A um mês de ótimo faturamento, podem se suceder outros de vacas magras: toda forma de comércio está sujeita a ciclos sazonais, como picos de venda no Natal seguidos de baixa em janeiro, por exemplo. “Antes de um ano, é loucura largar o emprego”, diz Szulcsewski. – que recomenda até mais prudência: dezoito meses seria o tempo ideal para pesar a fidelidade da freguesia, a regularidade e organização do próprio vendedor e o retorno das suas vendas.
Em favor dos que acreditam reunir as qualidades necessárias, existe a oferta cada vez maior de empresas em busca de representantes. Os cosméticos são ainda o carro-chefe do setor, com a Avon reunindo o maior número de revendedores – 1,1 milhão. O catálogo da empresa, porém, diversificou-se, e sua venda de livros corresponde a uma fatia expressiva do mercado editorial brasileiro (veja o quadro “Os soldados do livro”). O turismo é uma novidade no setor: criada em 2006, a Viagens WOW!, braço da agência paulista Embarque Nessa, já conta com 10.000 “agentes de lazer” em todo o país. Esse vigor das vendas diretas se traduz na competição acirrada das empresas pelos melhores profissionais. Em 2006, o Grupo Silvio Santos lançou a Jequiti, marca de cosméticos distribuída apenas em venda direta (e que conta com o SBT como um canal de publicidade privilegiado). Há dois anos, ela fez uma varredura no mercado: tirou vinte profissionais da concorrência, entre diretores e gerentes. Só de revendedores, já tem 117.000. Empresas que se estabeleceram segundo outros modelos também estão ingressando no segmento. Fundado em 1977 e com quase 2900 lojas franqueadas, O Boticário vem tirando dirigentes de seus competidores e está preparando catálogos de venda direta para teste em duas cidades, no Nordeste e no Sudeste. São regiões estratégicas: o Sudeste concentra o maior volume de vendas, enquanto o Nordeste apresenta o maior potencial de crescimento. Para quem é organizado e tem aquele jeitinho todo especial pelo qual se reconhecem os bons vendedores, portanto, esse mercado é hoje espaçoso como um coração de mãe: de norte a sul, tem sempre lugar para mais um.
Os soldados do livro
As pedaladas de Edna Ferreira são famosas em Cabreúva, cidade de 42.000 habitantes a 80 quilômetros de São Paulo. Todos os dias, ela passa até seis horas percorrendo o bairro do Jacaré, o mais populoso do município. "Quando chego, as pessoas gritam de longe me chamando para um café”, diz. Edna começou a pedalar por recomendação medica, após uma cirurgia de redução de estômago. Desde 2003, porém, quando passou a revender produtos da Avon, a bicicleta é seu meio de transporte num percurso que inclui bancos, delegacias, a prefeitura, escolas, um açougue e a casa de clientes ávidos por seus catálogos, com produtos que vão de batom a sapatos. Mas são os livros que tem despertado a curiosidade dos cabreuvanos. “Tenho clientes sedentos por eles", diz Edna. Cabreúva é uma das 1600 cidades brasileiras sem livrarias. O país possui cerca de 2600 livrarias - pouquíssimas, com o desequilíbrio adicional de metade delas ficar em grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro. O trabalho de Edna é, assim, ilustrativo da função extraordinária de milhares de ambulantes: batendo de porta em porta, eles vêm formando uma legião de novos leitores. Em 2008, 29 milhões de livros foram distribuídos por venda direta no Brasil – ou 13% do total, à frente da internet. Embora os números ainda não estejam tabulados, uma nova pesquisa indica que o crescimento prosseguiu em 2009. A Avon é a principal responsável por essa expansão, graças a um exército de mais de 1,1 milhão de revendedoras. A empresa decidiu incluir os livros em seu catálogo em 1993. “De início, era uma experiência. O grande achado foi reduzir os custos dos livros, para que um maior número de pessoas com poucos recursos pudesse ter acesso a eles”, diz o peruano Luis Felipe Miranda, presidente da Avon no Brasil. Os títulos passam por uma remodelação antes de entrar nos catálogos. A maioria das vinte editoras que possuem, contrato com a empresa produz edições compactas, sem orelha, com capa simples e letras mais apertadas – o que derruba os custos em ate 50%. Os best-sellers e os livros voltados para as classes C e D figuram entre os mais procurados. Ou seja, vendem-se multo a saga Crepúsculo e volumes de auto-ajuda como Nunca Desista de Seus Sonhos, de Augusto Cury. Mas são um sucesso também títulos como Clique e Descomplique, que ensina a usar programa básicos do computador, e Concursos Públicos, um guia sobre matérias que caem em concursos. Já a Melhoramentos produz para a Avon edições infantis com atrativos extras, como quebra-cabeças e imãs, e preço maior – mas parcelável em até dez vezes. "É uma chance única de explicar pessoalmente ao consumidor o que é o produto”, diz Breno Lener, diretor da editora.
A idéia de vender livros no catálogo tem chamado a atenção em outros países onde a Avon atua, como Venezuela e Colômbia: o produto é rentável e presta um serviço à sociedade. “É o maior orgulho chegar às reuniões que faço com os vice-presidentes de fora e falar do nosso sucesso com livros”, diz Miranda. “O mais importante é saber que criamos o hábito da leitura em pessoas que não tinham”.
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